"Gostaríamos de começar por expressar a nossa profunda gratidão pela oportunidade de conhecer e interagir com a obra artística de Rouzbeh Akhbari, Kent Chan, Euridice Zaituna Kala, Maren Karlson, Hira Nabi, Marilú Mapengo Námoda, Luis M. S. Santos, Malik Nashad Sharpe (Marikiscrycrycry) e Eve Stainton na Galeria Municipal do Porto. O Prémio de Arte Paulo Cunha e Silva é uma exposição enriquecedora que reúne um amplo leque de abordagens — da performance à instalação, gravura, pintura, escultura e imagem em movimento —, meios que revelam um conjunto alargado de preocupações temáticas. Os presentes e dolorosos efeitos do colonialismo, conjugados com reflexões sobre a crise climática, são linhas recorrentes exploradas através de narrativas pessoais, transformações corporais e a reformulação de cronologias para evocar tecnologias complexas. Enquanto júri deste prémio, foi uma experiência estimulante descobrir mais sobre as práticas de cada um destes artistas através do visionamento das suas obras no Porto.
Queremos também manifestar o nosso apreço pelo Prémio se centrar em apoiar as práticas dos artistas, possibilitando a continuação da investigação, assim como o desenvolvimento e a produção de novos trabalhos; com esse objetivo, fomos incumbidos da seleção de três artistas que irão completar residências nos seguintes centros culturais: Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas, em São Miguel, Açores; Cove Park, na costa oeste da Escócia; e Pivô Arte e Pesquisa, em São Paulo, Brasil.
Baseámos a nossa escolha naquilo que vimos na Galeria Municipal do Porto, tendo em conta a trajetória de cada artista e o conhecimento do que cada espaço de residência artística tem para oferecer. Nesta perspetiva, temos o prazer de anunciar que:
• Marilú Mapengo Námoda foi premiada com uma residência no Arquipélago —Centro de Artes Contemporâneas;
• Luis M. S. Santos foi premiado com uma residência em Cove Park;
• Kent Chan foi premiado com uma residência no Pivô Arte e Pesquisa.
Sobre as pessoas premiadas:
A abordagem de Marilú Mapengo Námoda ao conhecimento da língua e às políticas de apagamento exercidas durante muito tempo no seu país natal, Moçambique, deixaram em nós uma forte impressão. Sabendo que as estruturas educativas coloniais se prolongaram nos sistemas contemporâneas de educação, mantendo viva essa opressão, acreditamos que é necessário dar mais espaço e atenção a um trabalho como este, para que possa investigar mais profundamente as formas como as línguas tradicionais e os saberes que contêm podem e devem constituir uma base para a aprendizagem.
Memórias de uma língua de cão recebe os visitantes num espaço de obscuridade com um monte de terra, sobre o qual observamos imagens em movimento: um grupo de mulheres a trabalhar a terra, ao que se seguem imagens de Marilú jogando com as capacidades e as incapacidades da sua língua e boca para apenas engolir qualquer coisa que lhe seja apresentada; o ato natural de sufocar torna-se um ato político. A presença da terra remete para o enraizamento e uma forte fundamentação, mantendo-se firme contra o apagamento dos saberes que mantiveram o echuwabo como língua e as comunidades bantu durante muitas gerações antes da chegada dos opressores estrangeiros. O cheiro da terra, os contornos da boca, tudo cria uma experiência visceral em relação ao tema — isto é, a repressão da língua pela força. O trabalho de Marilú conduz-nos a um estado de desconforto. Desencadeia uma reação no espectador e consegue transmitir com sucesso o performático através da escultura/instalação.
O que significaria continuar um trabalho como este na residência do Arquipélago — Centro de Artes Contemporâneas, em São Miguel, nos Açores?
O programa de residência artística do Arquipélago dá uma grande importância à necessidade das sociedades contemporâneas de estarem em permanente reflexão, dadas as alterações constantes que as pessoas enfrentam a nível político, geopolítico, económico, financeiro, social, cultural e tecnológico. Acreditamos que este encontro com a artista Marilú Mapengo Námoda irá contribuir para o surgimento de reflexões críticas sobre o papel do artista e, de um modo geral, daqueles que praticam arte na transformação da sociedade. O Arquipélago desenvolveu um conjunto de programas e estruturas que permitem que os artistas em residência tenham a oportunidade de estabelecer contactos com as comunidades locais, escolas, associações de mulheres e não-binárias, de modo a aprender e criar em conjunto.
As intrigantes e lúdicas esculturas de três pernas de Luis M. S. Santos Void (2022) e Fragments of Being #1 (2023) revelaram-nos de imediato uma prática centrada na investigação material imaginativa e exploratória. Madeira esculpida e pintada, cerâmica, ferro, palha e correias associam aquilo materiais encontrados com partes que foram cuidadosamente elaboradas, criando configurações que parecem em parte celebratórias e em parte conflituosas — seguras de si, mas também em turbilhão. Desta forma captam parte da essência do que significa estar vivo no momento presente. Uma inquietude persistente emana da escultura de Santos TV Contraption (2022), apresentada como parte deste trio intitulado All of this always happens simultaneously. Nesta peça, uma cabeça inclinada paira sobre um monitor de televisão que lhe ilumina o rosto à medida que animações digitais de si própria e dos seus associados vão passando no ecrã. Como está esta fascinada cabeça humana a processar a tradução de uma escultura tridimensional para um avatar animado que se move pelo espaço digital? Será alguma vez capaz de levantar a cabeça deste ciclo autorreflexivo? Este grupo de esculturas de Santos — um trabalho cheio de pathos e de humor — abre inteligentemente um espaço crítico para refletir sobre os dilemas ambíguos e antagónicos em que atualmente vivemos. Apreciámos profundamente a acessibilidade do trabalho de Santos e reagimos tanto à sua intriga material como à sua dimensão conceptual.
Com tudo isto em mente, atribuímos a Luis M. S. Santos a residência em Cove Park, na costa oeste da Escócia. Situado na encosta de uma colina em frente de Loch Long, Cove Park é um centro de residências internacional que apoia a produção da arte contemporânea sob todas as formas e destinado a artistas em todas as fases das suas carreiras. Muitos escritores, artistas e músicos conhecidos e consagrados usaram o seu tempo em Cove Park para desenvolver o seu trabalho no silêncio dos seus estúdios, mas com a vantagem de estarem rodeados por uma comunidade de condiscípulos e praticantes da mesma arte. Outra vantagem potencial é a oportunidade para interagir com a dinâmica cena artística de Glasgow, não muito distante. Esperamos pois que esta experiência de Santos se possa traduzir numa ocasião para as suas peças serem vistas em novos contextos.
Kent Chan apresenta-nos um futuro em que o museu é constituído pela simbiose entre arqueologia, pensamento ancestral e máquinas criadas pela humanidade. São simulacros de microclimas nos quais corpo e natureza são parte do mesmo sistema, como uma prótese. Para além dos debates contemporâneos sobre tradições, clima e natureza, as narrativas fictícias de Chan dialogam com a imaginação tropical. De uma forma também híbrida, essas narrativas exploram o contexto, as políticas e a estética do calor e do aquecimento.
As peças Warm Fronts e Future Tropics propõem uma fusão entre passado e futuro em que a tecnologia, os seres humanos e a natureza são um corpo único, como um ciborgue.
Diz-me frequentemente que as plantas não podem fugir, têm de se adaptar. Algumas aprofundam as suas raízes, esperando um tempo mais benéfico, outras disseminam as suas sementes para procriar, ampliam os seus ramos até ao chão para criar novas raízes, outras simplesmente voam. Na ficção Future Tropics, estas eternas migrantes procuram novos microclimas, vagueando interminavelmente no oceano sem conseguir tocar terra. Uma metáfora do futuro incerto. Onde iremos desembarcar?
“Ter o privilégio de desembarcar. Estamos aqui, mas vamos constantemente para outro lugar.” (Kent Chan, Future Tropics, 2022) *
Pivô é um espaço cultural no centro de São Paulo, o segundo maior de toda a América do Sul, localizado num microclima específico no triângulo formado pelas ruas Ipiranga, Consolação e São Luiz, no bairro República. Imaginamos que, no Pivô, Kent Chan fará certamente parte da diversidade de saberes sobre a paisagem urbana tropical, interagindo com os artistas residentes de diferentes partes, referências e contextos do Brasil.
Felicitamos todos os artistas nomeados para o Prémio de Arte Paulo Cunha e Silva e desejamos a Marilú Mapengo Námoda, Luis M.S. Santos e Kent Chan todo o sucesso nas suas residências."